segunda-feira, 8 de março de 2010

Minhas mestras ancestrais

Por Suely Carvalho* Foto de Bruna Maldonado


Herdei a Tradição das minhas bisavós e avós. Minha bisavó Joaquina do Espírito Santo foi uma mulher admirável, ajudou a povoar vários municípios no entorno de Itararé-Sengés onde nasceu, fronteira do Paraná com São Paulo. Era uma mulher determinada e vivia na contra-cultura. Meu bisavô Joaquim Roque construtor e instrutor voluntário de camponeses na construção civil era um homem sensível, apaixonado, admirava e respeitava o trabalho da minha bisa, aceitava que ela saía a cavalo sozinha para atender partos nos sítios da redondeza e muitas vezes passava dias fora de casa partejando e cuidando da recém parida até cair o umbigo do bebê. Foi o terceiro marido da bisa Joaquina, ele era 10 anos mais jovem que ela e se amaram profundamente. Ele morreu aos 50 anos na epidemia de tifo, ela ficou sozinha até morrer aos 89 anos, sempre partejando.

Bisavó Madalena dos Santos

Não tive muitos detalhes do trabalho da minha bisavó Madalena porque ela era descendente direta de índio e era nômade, vivia em pequenos vilarejos e atendia partos enquanto meu bisavô índio trabalhava em plantações e caçava. Minha bisa Madalena era arredia e teve pouco contato com sua nora, minha vó Maria do Espírito Santo que ao casar com meu avô Urias Santos, nômade barbeiro, teve 14 filhos, a maioria sozinha em lugares isolados; meu avô cortava os cabelos das pessoas do povoado permanecendo algumas semanas, depois seguiam caminhando para outros vilarejos por onde passavam e ajudavam mulheres a terem seus partos e meu avô além de barbeiro ensinava remédios caseiros. Minha vó Maria, filha da Parteira Joaquina do Espírito Santo, meu avô Urias, filho da Parteira Madalena dos Santos.

Meus avôs, também meus mestres

Meu avô Urias dos Santos era raizeiro, não permitia em sua casa o uso de remédios alopatas. Ensinou-me remédios caseiros, o uso das plantas medicinais porque eu insistia, era curiosa, perguntava tudo e ele pacientemente ensinava. Apesar de ser descendente indígena não tinha o hábito de comer carne, em nossa casa que era uma chácara a alimentação era natural. Meu avô Manoel Carvalho conhecido como seu Maneco, pai do meu pai, era devoto de São Cipriano, usava o livro de rezas da Cruz de Caravaca. Além de rezador ele era vidente e falava com os espíritos naturalmente e eu ficava o máximo de tempo que podia estar com ele para vê-lo conversar com os espíritos. Meu avô Maneco era nativo da Ilha das Peças e toda a linhagem do meu pai eram pescadores caiçaras da Ilha no litoral do Paraná. Na Ilha das Peças meu avô Maneco via e conversava com os espíritos dos padres Jesuítas do primeiro século do Brasil e ele mostrava enormes pedras onde haviam inscrições feitas pelos Jesuítas que os espíritos mostravam onde estavam. Minha infância foi povoada pelas histórias dos meus dois avôs um índio raizeiro e barbeiro o outro pescador caiçara nativo da Ilha.

Minha vó Ernestina Pereira Carvalho

Nativa da Ilha das Peças no litoral do Paraná teve seus nove filhos sozinha na Ilha, ajudava outras mulheres nativas a terem seus filhos e fazia rezas e simpatias para ajudar os pescadores a voltarem vivos do mar com muitos peixes. Fazia patuás e simpatias para crianças doentes e encomendava as almas dos que faleciam. Minha vó Ernestina e meu avô Maneco tiveram um longo casamento de 60 anos e se amaram a vida toda.
Eu ser parteira tradicional é uma missão herdada. Minhas três bisavós foram parteiras em tempo e lugares muito remotos, minha avó materna e paterna foi parteira delas e de outras mulheres. Era um tempo onde ser parteira era um ofício de muito respeito e poder, tempo onde parir na própria casa era o óbvio, nascer naturalmente era sagrado, abençoado. Quando o inevitável (naquele contexto) acontecia era perfeitamente compreendido mesmo com toda dor da perda.

Uma característica é que a maioria das Parteiras não tem marido, desde sempre foi assim, é difícil o marido aceitar que frequentemente sua mulher saia no meio da noite atendendo o chamado de um homem estranho que foi buscá-la para atender sua mulher em trabalho de parto, o marido ficava sozinho enquanto a mulher saía e não sabia quando voltaria.

Minha bisavó Joaquina, do Espírito Santo, foi casada três vezes e isso não era comum para a sociedade da época. Seu último marido, meu bisavô Joaquim Roque, era dez anos mais jovem o que também causava espanto na época. Foram apaixonados e felizes, minha bisavó saia a cavalo para atender parto, despedia-se dele sem saber quando voltaria, muitas vezes passou mais de um mês sem voltar pra casa, porque fazia parte do oficio de Parteira permanecer por sete dias na casa da mulher parida, até depois de cair o umbigo do bebê, e acontecia de chegar outra pessoa chamando-a para outro parto e ela emendava de um lugar para outro. Em casa, meu bisavô esperava por ela com saudades, mas ele a amava muito e tinha grande admiração pelo trabalho dela, ele ia comprando presentes, juntando para recebê-la e presenteá-la quando voltava. Seu maior presente para ela foi uma igreja que com um grupo de homens que ele ensinava o trabalho de construção ele construiu para ela. Minha bisavó Joaquina ajudou a povoar mais ou menos seis municípios na fronteira entre São Paulo e Paraná. Minha bisavó Madalena era indígena, nômade, teve muitos filhos e atendeu muitos partos entre um povoado e outro por onde passavam e permaneciam alguns meses, nenhum tinha documentos, a história era repassada oralmente. Eliane era minha bisavó Parteira por parte de pai, era caiçara da ilha das Peças. Ela ia para a casa da gestante vários dias, até semana antes do parto, alguém ia buscá-la a pedido da gestante, a viagem era longa e difícil entre uma ilha e outra, por toda a região onde era conhecida, a viagem era de canoa a remo, não havia motor.

Eu honro minhas ancestrais dando continuidade, respeitando e preservando a Tradição. Este ano de 2010 completo 35 anos que sou Parteira, atendi até agora 5.300 e alguns partos. Em casa em torno de 800, o restante atendi na maternidade. Todos os partos que atendi em domicilio eu lembro cada um, tenho com as crianças de diferentes idades uma relação familiar, são meus afilhados/as, existe um vínculo forte. Uma das minhas filhas é Parteira, minha herdeira e ela têm uma das filhas, minha neta, também aprendiz de Parteira. Assim, preservamos a cultura e a Tradição.

Convido as pessoas a resgatar seus/suas ancestrais e restabelecer esse vínculo entendendo que herdamos o que somos socialmente e o que temos de meio ambiente, não criamos nada apenas transformamos. Para estarmos aqui foi necessário que existissem nossos antepassados; mãe, pai, avós, bisavós, tataravós... a medida que vamos conhecendo nossa história vivida e construída pelos nossos antepassados a ideia de eternidade torna-se real e a sensação de plenitude nos preenche, ao mesmo tempo sentimos a força da responsabilidade que temos com os que vem depois de nós, nossos descendentes. Um dia seremos contadas/os em histórias pelos nossos filhos/as, netos/as, bisnetos/as... seremos antepassadas, seremos ancestrais.

Que possam nos honrar.

* Suely Carvalho é parteira tradicional em Olinda/PE e uma das organizadoras do Centro Ativo de Integração do Ser - CAIS do Parto.

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