domingo, 18 de abril de 2010

Direito de nascer

Por Joana Moncau & Spensy Pimentel

Segunda-feira, 24 de agosto, oito e meia da noite. O monitoramento do coração da criança indicara uma leve desaceleração. Somado ao fato de que, naquele dia, completavam-se 41 semanas de gestação – nas contas dos médicos –, a residente decidiu decretar: “Vamos ter de interná-la”. O desconcerto foi enorme. Apesar do nervosismo com a demora para que a criança nascesse, os dois não esperavam que a ida até o hospital público resultasse num parto induzido. Depois de meses de esforço para que tudo ocorresse de maneira natural. Rapidamente conversaram e avisaram à jovem doutora que desceriam para tomar um café e pensar sobre que decisão tomariam. Aparentemente irritada por ser contrariada em sua autoridade de médica, ela retrucou, sem pestanejar: “Tudo bem. Mas se a criança morrer nesse meio tempo, eu lavo as minhas mãos”. O impacto sobre o ânimo do casal foi enorme. Tensos, eles desceram até um restaurante próximo para conversar sobre o que fariam. Por absurdo que pareça, ter um parto natural não é algo fácil, ao menos para quem vive em uma cidade como São Paulo. Trata-se de fazer opções que, simplesmente, não estão previstas no roteiro-padrão do atendimento médico. Apesar dos esforços do Ministério da Saúde, já há alguns anos, para reduzir o índice de cesáreas, existe algo além da simples decisão da gestante por um parto “natural”: afora driblar profissionais como a citada acima, é preciso descobrir as minúcias envolvidas no chamado “protocolo médico”. Ou seja, ter conhecimento de que uma série de procedimentos é aplicada automaticamente na paciente, fazendo a diferenciação entre parto normal e natural, este último com o mínimo possível de intervenções e respeitando as vontades da mãe. Isto porque, mesmo onde se pratica o parto normal, em grande parte das vezes não se pergunta se a mãe quer ou não receber a aplicação de ocitocina – hormônio que estimula as contrações artificialmente, causando dor e desconforto. Quem não sabe sobre esse tipo de detalhe antes, dificilmente vai conseguir fazê-lo quando já está sentindo as contrações. Igualmente a presença de um acompanhante durante o pré-parto e o parto é um direito da mãe1, mas em muitos locais não existem instalações para que essa segunda pessoa fique acomodada. É possível então que a gestante tenha de ficar por, digamos, 20 horas sozinha, em trabalho de parto e, só no fim, durante os 15 minutos de expulsão, tenha a companhia de alguém.
Ter um parto natural é, portanto, algo que demanda amplo envolvimento em pesquisa. Sem curiosidade e tempo para se informar, a gestante é facilmente enquadrada nos protocolos e, talvez, só descubra que tinha a opção de fazer diferente quando for tarde demais. Não por acaso, grande parte dos usuários das poucas casas de parto natural do Sistema Único de Saúde tem ensino superior e padrão econômico elevado2. Em São Paulo, há, hoje, apenas duas delas em funcionamento, em São Miguel Paulista e Sapopemba. E pasme: mesmo sendo poucas, elas são subutilizadas – operam com menos de 50% da capacidade atual. A ideia das casas de parto é tirar o nascimento do âmbito hospitalar e proporcionar-lhe um ambiente o mais natural possível, com o máximo respeito à mãe. Por isso, as figuras centrais nessas instalações não são os médicos, mas sim as enfermeiras obstetrizes ou parteiras – reconhecidas pela Organização Mundial de Saúde como as profissionais mais indicadas para lidar com os partos de baixo risco. Há uma triagem rigorosa: casos com potencial de complicação são automaticamente encaminhados para os hospitais. Boicote às casas de parto
E por que não existem mais unidades ou não se divulga as que já estão em funcionamento? Bem, dez anos depois da criação das casas no âmbito do SUS, a tática de seus opositores parece estar clara: por um lado, protelar o máximo a expansão dessa rede (em 1999, a intenção era a de criar 40 casas de parto por todo o País – hoje, há pouco mais de 10 em funcionamento); por outro, boicotá-las aos poucos, até que morram por inanição. Em 2008, por exemplo, foi fechada a Casa de Parto que funcionava na Universidade Federal de Juiz de Fora, sob a alegação de que ela dava prejuízos à instituição e não cumpria com os seus objetivos, em função do baixo número de atendimentos. No início de 2009, a Vigilância Sanitária chegou a interditar a Casa de Parto do Rio de Janeiro por falta de equipamentos – posteriormente, a unidade foi reaberta. Além disso, o sistema público, muitas vezes dominado pelos próprios médicos, não divulga a existência desses equipamentos3 porque o sucesso das casas de parto é, também, a evidência mais forte de que o trabalho dos doutores pode ser dispensável na maioria dos casos. Afinal, segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde), o índice internacional considerado aceitável é de 15% de cesáreas. Por aqui, chegamos a uma média de 43% de cesáreas, com taxa de 26% na rede pública, e 80% na rede privada4. A militância pelo parto natural tem raízes inauditas5. O médico cearense José Galba de Araújo é reconhecido como pioneiro. Nos anos 1970, ele coordenou esforços para integrar as parteiras tradicionais ao Sistema Público de Saúde, capacitando-as para melhorar o trabalho comunitário que já exerciam. Outra figura central é o médico Moysés Paciornik. No Paraná, depois de estudar as índias kaingang, que tinham mais filhos e melhor saúde que as brancas em geral, ele escreveu o livro “Aprenda a nascer e a viver com os índios” e passou a defender o parto de cócoras. Os trabalhos desses brasileiros, além de pessoas como o francês Frederick Leboyer6, atiçaram a curiosidade de profissionais de saúde de várias partes do país e formaram uma geração de ativistas. Nos anos 1990, foi constituída a Rede pela Humanização do Nascimento (Rehuna). Gente oriunda dessa turma espalhou a militância pelo parto natural por coletivos como o Amigas do Parto ou o Grupo de Apoio à Maternidade Ativa (Gama). Hoje, a novidade é que, cada vez mais, o ativismo pelo parto natural incorpora usuárias do Sistema de Saúde, e não apenas técnicos. São mães que passaram por boas ou más experiências e querem compartilhá-las. A rede Parto do Princípio7, por exemplo, reúne mais de 200 mães em 16 estados e busca estimular o debate público sobre a questão. Além de disponibilizar farto material na internet, essas redes estão, muitas vezes, associadas a centros como o que o Gama8 mantém na zona oeste de São Paulo. Ali, diversas reuniões semanais gratuitas oferecem informações às gestantes sobre todas as opções disponíveis e os direitos de que elas dispõem caso sejam atendidas em hospitais privados ou na rede pública. Num trabalho de mapeamento de grupos semelhantes ao Gama, a rede Parto do Princípio já encontrou 47 coletivos, em 29 cidades brasileiras. E quanto ao casal lá do início? Felizmente, meses antes, eles tinham tido acesso a toda essa rede de informações, sobretudo a partir de amigas que já tinham tido boas experiências com o parto natural e contavam, também, com médicos conhecidos que puderam dar parâmetros mais confiáveis sobre o que estava acontecendo naquela noite. De volta ao hospital, exigiram que o exame do coração do bebê fosse refeito, uma vez que uma única irregularidade no ritmo cardíaco poderia não configurar problema nenhum. Depois, outra residente constatou dilatação mínima e efetuou o descolamento da bolsa d’água que ajuda a apressar o trabalho de parto. Eles se recusaram a interná-la para a indução – o que significaria ficar sozinha no hospital, sendo medicada, por até três dias – e voltaram para casa. No dia seguinte, ela continuou em observação, até que, de noite, entrou naturalmente em trabalho de parto. Dirigiram-se, então, ao Amparo Maternal – maternidade paulistana que atende pelo SUS e privilegia o parto normal humanizado. Entrando na 41ª semana, já não poderiam ser atendidos nas casas de parto da cidade. Depois de 20 horas, junto ao companheiro, alternando-se entre a cama e os banhos de chuveiro e banheira, para aliviar as dores das contrações, e com uma breve aplicação de ocitocina na fase final do processo, com autorização da mãe, ela deu à luz, pelas mãos de uma enfermeira obstetriz, um menino de 4,15 quilos e 53 centímetros, em perfeito estado de saúde. Recebeu o nome de Tiê Moncau Pimentel.
Em memória de José Eduardo Cajado Moncau, o Peninha.
Joana Moncau é jornalista, cientista social e educadora. Spensy Pimentel é jornalista e doutorando em antropologia pela Universidade de São Paulo (USP).
Notas:
1 Lei 11.108, de 2005.
2 “Donas do próprio parto”, Folha de São Paulo, 06/10/2005.
3 Ver, por exemplo, constatação de que, em São Paulo, as unidades básicas de saúde do SUS não têm encaminhado gestantes de baixo risco às casas de parto (“Em SP, unidades enfrentam esvaziamento”, Folha de São Paulo, 17/6/2009).
4 Dos Indicadores Sociodemográficos e de Saúde no Brasil, divulgados pelo IBGE em setembro de 2009.
5 História relatada pela professora Ruth Osava, da Universidade de São Paulo. Ver, também, o site www.amigasdoparto.com.br
6 Autor de “Nascer Sorrindo” e “Se me Contassem o Parto”, entre outros livros.
7 Mais informações em: www.partodoprincipio.com.br 8 Mais informações em: www.maternidadeativa.com.br Publicado no LE MONDE diplomatique Brasil .

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