terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Partejando: quais os caminhos para esta arte?

O texto de hoje nos conta, na voz de três obstetrizes, ou parteiras graduadas, como se configura o ofício através da Faculdade de Obstetrícia, da EACH - USP Leste, bem como os desafios da profissão.



Por

Bianca Alves de Oliveira Zorzam
Formada pela 1a. turma do Curso de Obstetrícia da USP, em 2008. Doula, consultora em amamentação, e mestranda da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP), integrante do Grupo La Mare
biancazorzam@gmail.com

Bianca Dias Amaral
Formada pela 1a. turma do Curso de Obstetrícia da USP, em 2008. Especialista em Saúde Coletiva pelo Instituto de Saúde (SES/SP), integrante do Grupo La Mare e obstetriz da Medicina Preventiva da Unimed Jundiaí 
bibadias@yahoo.com

Maíra Fernandes Bittencourt
Formada pela 2a. turma do Curso de Obstetrícia da USP, em 2009. Integrante do Grupo La Mare, conselheira fiscal da Associação de Alunos e Egressos do Curso de Obstetrícia da USP (AO-USP), colaboradora da ONG Amigas do Parto e obstetriz da Medicina Preventiva da Unimed Jundiaí
mairafarfala@yahoo.com.br

A criação de parteiras acadêmicas no Brasil é antiga. No século XIX, mme. Durocher, francesa naturalizada aqui no Brasil, foi a primeira mulher a se formar como parteira através do curso aberto pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Com o passar do tempo, formaram-se obstetrizes, termo acadêmico que se criou para designar as parteiras acadêmicas em várias cidades brasileiras, inclusive na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).

No século XX, os cursos tinham em média três anos de duração e formavam profissionais diferentes da área médica e da área de Enfermagem. Nos centros obstétricos e em casa, os partos normais eram assistidos por obstetrizes, além dos médicos, mas não por enfermeiras.

Em torno dos anos 70, o modelo político que passou a vigorar começou a rejeitar a formação de obstetrizes e a defender a formação exclusiva de enfermeiros especializados em Obstetrícia, uma vez que esta categoria garantiria a atenção à mulher dentro do contexto obstétrico. Além disso, o crescente número de escolas de Enfermagem abertas em todo o País levou à extinção do último curso de formação direta de obstetrizes, o da USP, deixando em vigor apenas uma legislação quanto às atribuições das obstetrizes.

No entanto, movimentos e visões sobre a assistência ao parto e nascimento nunca foram lineares e homogêneos e, aqueles que também se iniciaram por volta dos anos 70 no mundo todo, hoje identificado como o movimento de humanização do parto e nascimento, defensor de uma assistência que respeita a fisiologia e a normalidade deste processo, continuaram a defender a permanência de parteiras tradicionais e acadêmicas como profissionais de vital importância dentro das equipes de saúde e em diversos contextos.

Em vários países, como Holanda, Canadá e Inglaterra, a atuação da obstetriz na assistência ao parto trouxe melhores resultados perinatais, como a redução dos índices de morbi-mortalidade materno-infantis. Essa profissional, especializada em parto normal, promove assistência integral às gestantes, parturientes e puérperas de baixo risco, preservando e protegendo o processo fisiológico do nascimento. Através de técnicas que propiciam o manejo não-farmacológico da dor e a condução do parto fisiológico, a assistência centra-se na segurança e promoção do conforto físico e emocional da mulher durante todo o período gravídico-puerperal, incluindo os primeiros cuidados com o bebê e a amamentação.

Nos últimos anos, muitos esforços têm sido impulsionados pela categoria da Enfermagem Obstétrica no Brasil para a promoção da humanização da assistência ao parto. Estes esforços incluem o trabalho de um grupo de profissionais da Escola de Enfermagem da USP (EEUSP) a partir do projeto da obstetriz Dulce Maria Rosa Gualda, para a retomada da formação direta de obstetrizes no Brasil. Este ousado projeto causou grande polêmica e muitos não entenderam o motivo de se formarem obstetrizes para além da já existente especialização em Enfermagem Obstétrica.

Embora os cursos de especialização em Enfermagem Obstétrica insiram, recentemente, novas perspectivas para a formação de um profissional capacitado a respeitar a fisiologia do nascimento, percebia-se a necessidade de se investir em uma formação com sólidas bases acadêmicas no complexo contexto do parto e do nascimento, sob a perspectiva do modelo de humanização da assistência e as práticas baseadas em evidência, que compreendesse e, acima de tudo, valorizasse as esferas sexuais, culturais e espirituais das mulheres e famílias inseridas no evento da parturição.

O atual curso de Obstetrícia foi concebido e tem se desenvolvido em meio à necessidade de mudanças nos paradigmas dentro dos processos de cuidados, defendendo um novo modelo de assistência obstétrica. 
Durante a formação das novas obstetrizes, além de incluir a importância da assistência obstétrica frente às situações de riscos e patogenicidades, que necessitam de intervenções, são enfocadas e aprofundadas as formas de promoção e proteção de um processo que é essencialmente natural e saudável no contexto da vida da mulher.

Neste sentido, a defesa da retomada do curso de Obstetrícia e sua manutenção objetiva fortalecer e impulsionar as mudanças de paradigmas em relação à atual assistência obstétrica, cujo modelo é extremamente intervencionista e medicalizado, com índices alarmantes de morbidade e mortalidade materno-infantil, decorrentes de intervenções dolorosas e desnecessárias.

Ao contrário do que podem parecer, as obstetrizes estão em plena parceria com os esforços promovidos pela Enfermagem Obstétrica no movimento de humanização da assistência obstétrica. A exemplo de outros Países do mundo, enfermeiras obstétricas e obstetrizes atuam conjuntamente no sistema de saúde. 
Geralmente, as obstetrizes estão no modelo de Centro de Parto Normal (CPN), Casa de Parto e parto domiciliar, realizando a assistência às gestantes de baixo risco, enquanto as enfermeiras estão no cuidado de gestantes de alto risco, em modelo hospitalar. Embora as competências de ambos os profissionais permitam que o inverso também aconteça, isto é, que obstetrizes possam atuar nos contextos hospitalares e de alto risco e as enfermeiras nos contextos não-hospitalares citados acima, de qualquer forma se aposta antes de tudo na promoção e ampliação de um perfil de profissionais profundamente identificados em oferecer assistência para o baixo risco.

Enfermeiras obstétricas e obstetrizes podem e devem coexistir, quando se entendem as diversas instâncias de cuidados e níveis de atenção que envolve a assistência obstétrica. O Brasil tem uma alta demanda por profissionais competentes e qualificados que assistam o parto normal, especialmente porque existe uma escassez, inclusive de enfermeiras obstétricas, em muitos lugares do nosso País.

Após a formação da primeira turma do curso de Obstetrícia, um importante embate e disputa se estabeleceram como resistência ao resgate desta profissional e sua inserção no mercado de trabalho. O Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo (Coren-SP) e o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) se negaram a registrar as obstetrizes recém-formadas, ainda que este registro lhes fosse obrigatório por Lei Federal vigente, pela alegação de ser necessária uma formação anterior em Enfermagem para atuar nesta área. Além disso, estes órgãos estimulam uma disputa, já antiga e ultrapassada, entre obstetrizes e enfermeiras obstétricas, admitindo que as obstetrizes vieram tomar o lugar das enfermeiras.

Para entender esta disputa, é importante retomar o papel dos Conselhos na sociedade. Todo profissional de saúde, assim como qualquer profissão que possa colocar em risco a vida de outra pessoa, precisa juridicamente estar inserido num Conselho de classe. Mas, por que obstetrizes esperavam ser registradas no Conselho de Enfermagem? Novamente é preciso voltar na História e entender por que os criadores e docentes do curso de Obstetrícia da USP se surpreenderam com esta posição do Conselho de Enfermagem.

Quando, nos anos 70, se extinguiu o último curso de Obstetrícia, a presença de obstetrizes se manteve no mercado de trabalho e a conquista social pela manutenção desta profissão se conservou. Os Conselhos de Enfermagem abarcaram naturalmente essa profissional (até aquela época, a profissão era exclusivamente de mulheres) e as registraram como obstetrizes, isto é, as obstetrizes tinham um registro nos Conselhos de Enfermagem, mas identificadas como obstetrizes e não enfermeiras ou enfermeiras obstetras, como rapidamente passou a ser designado na formação de Enfermagem.

Nos anos 80, com a reformulação da Lei do exercício profissional de Enfermagem, a obstetriz foi inserida dentro desta plataforma. Nesta Lei, definiu-se que é enfermeiro o portador do diploma de Enfermagem ou Obstetrícia, e a obstetriz é citada inclusive nas determinações exclusivas do enfermeiro obstetra. Por que então esta resistência atual do Conselho em registrar obstetrizes?

Muitas discussões e ações foram e são necessárias para resolver este impasse, que tem gerado grandes obstáculos para as obstetrizes iniciarem sua vida profissional. Como pontua em reflexões com estudantes e egressos do curso de Obstetrícia, a profa. dra. Elizabete Franco Cruz, “não é preciso ser um grande leitor de Foucault e perceber que se trata de uma questão de disputa de poder”.

A formação de obstetrizes e as discussões ideológicas envolvidas seguem em diversos fóruns e alcançaram diversas entidades e associações que militam dentro do movimento de humanização do parto e nascimento e de direitos da mulher. Estes embates estimularam um amadurecimento político entre os estudantes e egressos do curso de Obstetrícia. Em meio a estas dificuldades, originou-se a Associação de Alunos e Egressos do Curso de Obstetrícia da USP (AO-USP), que acaba de se formalizar juridicamente, mas que desde o início do ano de 2011 já conta com membros empenhados, engajados e dedicados na luta pelo reconhecimento desta profissional e do modelo de assistência ao qual se inseriu a retomada das obstetrizes.

As obstetrizes que já conseguiram iniciar sua prática no contexto da assistência obstétrica vêm devagar encontrando reconhecimento dentro dos serviços e fora deles. Algumas iniciaram o trabalho ainda fora da prática de partejar, com o importante papel de produção acadêmica e científica para a manutenção e fortalecimento de uma assistência embasada e consistente, levando à frente todas as reflexões filosóficas e ideológicas que as práticas de promoção para a saúde da mulher e perinatal necessitam.

Outra minoria já iniciou sua jornada de atuação em um modelo não hospitalar, sintonizadas com mulheres que também buscam e desejam experiências diferentes, mais plenas e conscientes no seu processo de parturição e iniciação na vida como mãe, promovendo assistência domiciliar às mulheres e suas famílias durante a gravidez, parto e puerpério.

Também podemos encontrar outras poucas que iniciaram sua prática dentro de serviços obstétricos. Estas iniciam sua jornada com uma presença que reluta em desempenhar procedimentos que entende desnecessários e que fazem parte da rotina hospitalar, o que pode soar como incompetência dentro da ótica intervencionista e hegemônica da maior parte dos serviços. As obstetrizes causam estranhamento por alguns colegas de trabalho, encantamentos ou curiosidade e despertar em outros. Apesar de destoantes, a compreensão e aceitação de um novo olhar se desperta aos poucos.

Ainda que a grande maioria das obstetrizes nem sequer ganhou a chance de trabalhar na área e as poucas que estão dentro do Cavalo de Troia contam somente com a perseverança a cada dia, o que realmente alimenta estas parteiras que retomam um lugar na atual assistência obstétrica brasileira é o apoio de multidões de mulheres, que lutam há mais de décadas pelos seus direitos para uma vivência respeitosa do parto e nascimento, que foram às ruas por seu sólido objetivo de mudar o modelo hegemônico de assistência ao parto no Brasil. Esta é uma luta, sobretudo, de nós mulheres.

* Texto integrante de "Parteiras Caiçaras: relatos e retratos sobre parto e nascimento, em Cananeia, SP" - Capítulo Outras Vozes, organizado por Bianca C. Magdalena, publicado em dez. de 2011, c/ apoio do Programa de Ação Cultural (ProAC), da Secretaria de Cultura, do Governo de São Paulo.

Foto de Silmara Guerreiro, dinda e comadre, em meu trabalho de parto, em ago. de 2009.

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