quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Mãe é mãe, parto é parto. Mulher é tudo vaca? (Ou tautologia para gestantes)

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Cara leitora (ou leitor): você sabe o que é tautologia? Trata-se de uma figura da retórica cujo objetivo é expressar uma mesma idéia de maneiras diferentes. Por isso, não raro, é tida como sinônimo para pleonasmo ou redundância. Mas para a Filosofia ou outras Ciências Humanas um argumento tautológico vai além da mera expressão em outros termos e pode ganhar contornos falaciosos, uma vez que, quando aplicado a um sistema lógico, não oferece saída a sua própria lógica interna. Complicado? Não mesmo! Todos nós já vivenciamos a experiência tautológica; e diversas vezes. Por exemplo, quando buscamos nosso primeiro emprego precisávamos da tal “experiência” para sermos contratados, mas sem trabalho como adquirir experiência? Ou ainda, quando ouvimos frases do tipo “uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”.
Os mais novos talvez não se lembrem ou nem conheçam o grande (?) sucesso do Casseta Popular “Mãe é mãe”, que inspirou esse título. Tudo bem, eu, Natalia Cordoniz Klussmann, coloco aqui o refrão:
“Mãe é mãe, paca é paca! Mãe é mãe, paca é paca! Mãe é mãe, paca é paca! Mãe é mãe, paca é paca! Mas mulher... Mulher... NÃO! Mulher é tudo VACA! Mas mulher... Mulher... NÃO! Mulher é tudo VACA!”
Eis aí um grande exemplo de tautologia aplicada, debochada, difundida e musicada.
Ora, pergunta-se a nobre leitora, o caro leitor, e o que tem a ver tautologia com parto? Ora, respondo eu, tudo!
Na luta diária pela Humanização (assim mesmo, com letras maiúsculas para dar destaque e mostrar o quão nobre é esse valor) ao atendimento à gestante e à parturiente encontramos muitos sistemas tautológicos. É uma lógica própria, aparentemente impossível de ser quebrada ou contestada: o médico que só faz cesárea porque não se sente seguro com a sua experiência prática em parto normal; o medo do parto que aumenta a dor da contração, que aumenta o medo, que aumenta a dor, que aumenta o medo...; explicações e justificativas para cesáreas tão estapafúrdias como “foi assim porque foi assim”; e tantos, mais tantos outros exemplos, que tenho certeza vocês lembrarão e incluirão nessa listinha.
Contudo, existe um sistema tautológico que realmente me deixa possessa quando o assunto é a Humanização do nascimento, pois cria uma barreira que inviabiliza a discussão saudável – principal arma contra radicalismos e ignorâncias – do tema. Trata-se da máxima: “não sou menos mãe porque tive uma cesárea”, geralmente ouvida após a afirmação (correta e não-radical) de que cesárea não é parto: é intervenção cirúrgica de médio porte. E cria-se, assim, o sistema: “não é humanizado porque não me inclui não me inclui porque é humanizado”.
Ora, não misturemos alhos com bugalhos, como diria minha falecida bisavó. Mãe é mãe, parto é parto! E mulher?
Bom, antes de responder sobre a mulher, vamos falar só mais um pouquinho sobre partos e mães.
Parto é parto. Parto é antes de tudo um procedimento fisiológico e natural. Acontece com a expulsão fetal da cavidade uterina e, assim como hemodiálise não é fazer xixi e lavagem estomacal não é vômito, cesárea não é parto. Cesárea é intervenção cirúrgica. Deveria ser feita somente quando o processo natural e fisiológico não pode seguir o seu rumo.
E mãe? Ora, mãe é mãe. Mãe é aquela pessoa que cuida, que alimenta, que troca, que conforta, que educa, que serve de apoio e referência para um ser em formação. E, assim como mãe adotiva é tão mãe quanto uma mãe biológica, a mãe que pariu é tão mãe quanto à mãe que foi submetida à cesárea. Ponto final.
Mas e a mulher?
Bom, aí é que entra toda a questão. Quando uma mulher se sente magoada ou agredida ao ouvir “cesárea não é parto”, com certeza está incomodada com o estigma da “anomalia”, da coisa fora do padrão, que vem colado ao nome “cesárea”.
Nós, seres ocidentais, da fronteira entre os séculos XX e XXI, seres globalizados e engolfados pela loucura tecnocientífica, vivemos uma alucinada busca pela identidade. Ora queremos e precisamos nos sentir seguramente iguais, pertencentes a um grupo, ora desejamos ser reconhecidos no meio dessa grande massa amorfa que se aglomera em arranha-céus das megalópoles. Vivemos na corda-bamba de nós mesmos.
Assim, quando o maior questionamento identitário chega para nós, mulheres, ficamos ainda mais balançantes entre deixar a coisa ir de acordo com o padrão (sentir as contrações, ter a dor do parto, vivenciar o nascimento em toda a sua plenitude fisiológica) ou seguir para o lado do anômalo (ser submetida a uma intervenção, receber cuidados médicos indispensáveis após o nascimento do filho). Você leitora certamente não há de discordar de mim: quando nos tornamos mães questionamos tudo o que fomos e fizemos desde que nascemos até aquele momento, nos percebemos em um dilema verdadeiramente profundo no qual pensamos sobre os papéis sociais que desempenhamos e vamos desempenhar e damos novos significados a nós mesmos, ao mundo, ao pai da criança: reinventamos tudo!
Não pretendo escrever um tratado de Sociologia (embora haja muito que relacionar entre Humanização do nascimento e transformações sociais), tampouco realizar uma psicologização barata sobre o nascer, mas acho verdadeiramente importante pensarmos nos rumos que a discussão sobre Humanização do nascimento toma com frequência. Porque o ponto nevrálgico (e por isso muito dolorido) da questão não gira em torno da questão da maternidade. Não se discute isso – ou, ao menos, não se deveria discutir. O incômodo real está ligado à nova significação que damos à idéia de “mulher” logo assim que nos tornamos mães.
Deste modo, ficar ofendida com a assertiva “cesárea não é parto” é, na verdade, ficar incomodada com a incapacidade de parir. O que, definitivamente, não tem nada a ver com a capacidade de ser uma mãe amorosa, zelosa e bacana para os filhos. Relaciona-se, isso sim, com uma idéia que vem colada, implícita na cirurgia cesariana: algo deu errado, algo saiu do padrão natural. E sair do padrão é uma moeda com duas faces, opostas, mas sempre co-existentes. Ou seja, embora submeter-se a cesárea dê certa satisfação momentânea, pois nos sentimos especiais e podemos ter alguns holofotes em cima de nós, também significa que seremos estigmatizadas pelo (possível) não-funcionamento correto do nosso corpo. (Aqui eu abro grandes parênteses porque quero deixar claro que nem todas as mulheres necessitam de atenção e acham legais os cuidados pós-cirúrgicos, mas todas nós conhecemos mulheres que não conseguem lidar bem com o fato de que todos os que vão até o hospital ou a casa da família após o nascimento, estão ali pelo bebê, e não por elas.) Podem reparar que a maioria das mulheres que foram levadas à cesárea dá, mesmo sem que sejam necessariamente inquiridas sobre, uma desculpa ou justificativa com respaldo médico: não tive contrações, minha bacia é estreita, o bebê era muito grande, o cordão umbilical não deixava o bebê descer/receber oxigênio etc. É a des-culpa sobre o não-funcionamento do corpo de mulher – ainda que isso seja relativo e, é claro, não signifique, em hipótese alguma, que a mulher que pariu é mais mulher do que uma que sofreu a cesárea; não, não é isso. E que socialmente pode haver um balanço incômodo em direção ao lado da moeda em que a coisa fora do padrão é vista como algo negativo.
Então, o que se pretende com tudo isso? Deixar bem claro que a questão do papel de mãe não passa pela discussão da Humanização do nascimento, no sentido de que, parindo, adotando ou sendo submetida a uma cirurgia, uma mulher pode ou não se tornar mãe; isso depende de outros fatores que não são necessariamente determinados na hora do nascimento, embora tudo esteja relacionado. O objetivo da discussão pela Humanização do nascimento é oferecer às mulheres informações para que saibam que nascer de parto é bem melhor e mais saudável do que nascer por meio de uma cirurgia. E mãe é mãe, parto é parto. E mulher é sempre, sempre, mamífera, mas não vaca.
-->Texto de Natalia Cordoniz Klussmann

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