terça-feira, 9 de março de 2010

Parto humanizado

Por Leonardo Boff
A discussão sobre Cesariana X Parto Normal é muito antiga aqui nas linhas cibernéticas. Quem milita nas listas de discussão há alguns anos sabe que este debate vai e volta, sistematicamente, como um ioiô ideológico. Esta ótica específica da humanização - como algo relativo ao "humano" - foi amplamente debatida nesta lista há alguns anos, e re-debatida sistematicamente de tempos em tempos. Eu tenho um ponto de vista bem claro sobre o assunto, expresso no meu livro e nas minhas palestras, de que a "Humanização do Nascimento" tem a ver com um movimento filosófico chamado HUMANISMO, que, contrapondo-se ao teocentrismo da idade média, coloca o ser humano em destaque e oferece a ele o protagonismo de seu destino. Meu colega Maximilian consagrou a frase "Humanizar o nascimento é restituir o protagonismo à mulher" exatamente para oferecer este direcionamento ao movimento que visa humanizar partos. Segundo ainda Maximilian, sem o protagonismo garantido à mulher somente conseguiremos a "sofisticação da tutela", que não oferece a profundidade das mudanças geradas pela insensibilidade do paradigma biomédico de atender as necessidades básicas de uma mulher parindo. Desta maneira fica claro entender que uma cesariana não pode ser "humanizada" exatamente porque a mulher NÃO POSSUI o protagonismo: ela está à mercê da técnica e da assistência ostensiva do profissional que a atende. Por outro lado, é certo que uma cesariana pode ser "humana", tanto na concepção óbvia espécie-específica (pois é feita em seres humanos) quando na conotação de "gentil e respeitosa". Muito da discussão que observei sobre esta questão deve-se aos conceitos, ora equivocados, ora confusos, sobre o que vem a ser humanização. Cesariana é cirurgia, e no conceito que queremos dar à humanização ela NÃO tem como ser humanizada, pois aliena a mulher da sua condução (mesmo quando bem indicada). Por outro lado, um PARTO VAGINAL pode ser deveras DESUMANIZADO, e mesmo DESUMANO, quando impede a mulher de tomar qualquer decisão sobre seu corpo, ou quando a trata de forma rude, grosseira e mesmo violenta. Humanizar o nascimento é colocar a mulher como condutora do processo; tornar o parto "humano" é tornar a assistência mais suave, gentil e adequada. Entretanto, uma atitude gentil pode ocorrer até mesmo em partos desumanizados (sem protagonismo). Eu acredito que esta discussão fica acalorada por causa de seu evidente conteúdo erótico. Explico: parto é constituinte da vida sexual normal de uma mulher. Quando falamos em nascimento, parto, dores, contrações, vagidos e gemidos, estamos falando do EROTISMO pulsante e vivo que permeia este momento. É por esta razão que a discussão fica tão forte, mesmo quando eu vejo nítidos vértices de contato nos discursos de muitos debatedores. Não há duvida que existem diferenças claras do ponto de vista emocional, afetivo, psicológico e físico entre um parto vaginal e uma cirurgia, a qual sem dó nem piedade rompe 7 camadas de tecido para atingir a intimidade uterina. É claro para todos, também, que uma mulher NÃO se define pelo tipo de parto que teve: ninguém é mais mulher por ter tido um parto normal. Por outro lado, ninguém é mais homem por ter as duas pernas, mas a ninguém parece justo negligenciar as suas, e tampouco existem pessoas para quem perder as pernas não tem importância. Assim podemos entender o parto normal: não define a qualidade de uma mulher, mas não pode ser entendido como supérfluo ou desprezível para ela. O evento do nascimento é um momento impressionante na vida de uma mulher; divisor de águas é capaz de fazê-la naufragar em uma depressão melancólica (por reforçar suas fantasias inconscientes de impotência) ao mesmo tempo em que pode alçá-la a um patamar inimaginável de segurança, auto-estima e determinação. Uma encruzilhada ímpar. É fácil ver que isso pode ser atingido SEM a experiência de um parto (que o digam Madre Teresa, Jesus Cristo, etc.), mas nem por isso podemos fechar os olhos à sua imensa potencialidade criativa. A ansiedade que percebemos no que tange a esta discussão se origina exatamente de sua dimensão sexual. Falar do próprio parto é falar do seu sexo, da sua intimidade, de sua competência feminina. Por esta razão é importante que tenhamos esta visão até para que possamos contextualizar o debate e não torná-lo tão duro. Ainda sobre os conteúdos sexuais, basta que estejamos presentes em um nascimento humanizado para perceber que TUDO ali transpira sexualidade. Uma mulher deixada vagar livremente pelos seus desejos pode encontrar o êxtase no nascimento de um filho. Permitindo-se que ela transite pelo gozo indescritível desta passagem - sem interrupção e sem censura - ela poderá descrever seu parto (como já fui testemunha tantas vezes) como o momento mais prazeroso de sua vida. Pois é aí que está o segredo tão bem guardado !! Aqui se encontra o mistério recôndito. Se as mulheres soubessem o quanto existe de realização e transcendência no ato de parir estas discussões terminariam da mesma forma como se dissipa a névoa com a chegada do sol. Foram os homens que inventaram as dores lancinantes de parto, apenas para fazer valer sua técnica e seus aparatos tecnológicos. Era preciso fazer a mulher descrer em si para que ela acreditasse na idéia que somente através da intervenção sobre este corpo defeituoso é que se alcança sucesso no nascimento. Que triste !! Tanta força e tanta energia sexual desperdiçadas !!! Mas eu dizia ao mestre Marsden que não acredito que possamos enganar todas as mulheres por todo o tempo. Um dia elas vão acordar de seu sono de menosvalia, e reclamar de volta o que sempre foi seu.Neste dia o nascimento humano voltará a ser um momento deslumbrante, para uma nova sociedade de paz. Minha amiga Simone Diniz me disse há muitos anos uma frase que muito me irritou e me obrigou a refletir, até que eu finalmente aceitei e entendi: "A escolha pela cesariana é uma opção pela dignidade". O que vemos na sociedade contemporânea ocidental, no que tange ao parto, é um FALSO DILEMA: de um lado um nascimento violento regulado por pressupostos mecanicistas e positivistas, onde se aniquilam o psiquismo e a afetividade maternas em nome de uma ilusória objetividade cartesiana, junto com uma falsa promessa de segurança. Do outro lado uma cesariana, que é o ápice da alienação feminina sobre o nascimento, e onde se oferece o total controle médico sobre o evento. Neste contexto, optar por uma cesariana pode ser simplesmente o desejo de que seu parto seja minimamente digno, onde não haja alarido e violência verbal (por vezes física) na sala de parto. Optar pela cirurgia é ter controle (sim, o controle de decidir-se a fazê-la) para poder fugir da grosseria e da humilhação de parir sob o olhar de uma platéia onde podem até estar presentes curiosos, ignorantes e outros despreparados. O drama é que estas são as DUAS ÚNICAS alternativas oferecidas nos dias de hoje: partos humilhantes ou cesarianas alienantes, "limpas e seguras". Quase NINGUÉM (ok, muito poucos) oferece um parto digno, bonito, prazeroso, carinhoso, afetuoso e digno. ESSA É A LUTA !!! Os humanistas do nascimento não se contrapões às cesarianas (sou deslumbrado por esta história, de Edoardo Porro, passando por De Lee até os neo-cesaristas, como Marcelo Zugaib), mas nos insurgimos contra o abuso e a falsa promessa de redenção implícita no oferecimento de uma cirurgia como esta. Lutamos contra a objetualização e coisificação da mulher, seja numa cesariana ou num parto vaginal "Frankenstein", como bem dizia a Roselene. Somos visionários que enxergamos o nascimento como ATO REVOLUCIONÁRIO e libertário, que se opõe ao sexismo do patriarcado abrahâmico castrador, e que oferece uma nova visão para o porvir da humanidade, onde os nascidos de mulher serão acolhidos com amor. A simples diminuição matemática do índice de cesarianas não parece ser algo adequado. Diminuir a incidência dessas cirurgias sem a concomitante modificação da ideologia da assistência ao parto só pode produzir uma situação mais dramática do que a anterior. A falta de compreensão do sistema biomédico contemporâneo das necessidades básicas de uma mulher ao parir está na gênese do descalabro na assistência. O problema reside no modelo cartesiano aplicado ao nascimento, que entende o psiquismo apartado da "Humani Corporis Fabrica", e define a mulher como um aparelho defeituoso, equivocado e falho em essência. Sem uma mudança radical na visão que temos da MULHER vamos apenas criar aberrações sobre aberrações, sem nunca atingir o núcleo do transtorno. Precisamos mudar a forma de entender o feminino, para assim modificar o olhar que lançamos às grávidas. A tese do "protagonismo devolvido" e o rechaço à idéia de sermos "contrários à cesariana" são pontos nevrálgicos na discussão sobre a humanização do nascimento. Além disso, é importante trazer à tona a idéia de que abolir ou dificultar o acesso às cesarianas é inútil e até perigoso, porque a falha não é no seu uso (que não é causa, e sim conseqüência), mas na própria visão que temos da mulher e suas funções femininas. Precisamos nos dedicar a uma tarefa muito mais complicada e difícil do que simplesmente baixar nossas taxas de intervenção: necessitamos criar a "nova mulher", liberta dos grilhões do patriarcado e longe do revanchismo do antigo feminismo antropofágico. Precisamos, por fim, oferecer às gestantes e parturientes o suporte afetivo, espiritual e emocional que foi a marca de nossa ancestralidade, e aquilo que nos define como 'humanos", que é a capacidade de cuidar dos semelhantes.

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