terça-feira, 1 de junho de 2010

A Cama de Procusto

Por Dr. Ric Jones
"Procrusto era um bandido que vivia na serra de Eleusis. Em sua casa, ele tinha uma cama de ferro, que tinha seu exato tamanho, para a qual convidava todos os viajantes para se deitarem. Se os hóspedes fossem demasiados altos, ele amputava o excesso de comprimento para ajustá-los à cama, os que tinham com pequena estatura, eram esticados até atingirem o comprimento suficiente. Ninguém sobrevivia, pois nunca uma vítima se ajustava exatamente ao tamanho da cama. Procusto representa a intolerância do homem em relação ao seu seme­lhante. O mito já foi usado como metáfora para criticar tentativas de imposição de um padrão em várias áreas do conhecimento, como na economia, na política, na educação, na história, na ciência e na admi­nistração." (Wikipedia)
Eu, obviamente, incluiria a sanha homogeneizante da biomedicina contemporânea como exemplo entre os acima.
Se o mito existe, então é representativo do inconsciente coletivo. Passou pelo imaginário social e deixou sua marca na ficção. Segundo o psicanalista Slavoj Zizec, aquilo que é insuportável aos sentidos e à razão brota do inconsciente como narrativa ficcional. E mito.
O Mito, portanto, está querendo nos dizer algo a respeito dos "core values", dos valores funda­mentais que sustentam a cultura. Os mitos nos levam (direta ou indiretamente) ao poço pro­fundo onde se encravam as pilastras dos nossos códigos valorativos. Porque cortar as pernas e "normatizar" os visitantes? Porque tínhamos que nos adaptar à cama de Procusto?
Seremos nós, profissionais da saúde, vigários da "Religião da Boa Saúde" os Procustos hodi­ernos? Teremos todos que morrer (ou sofrer as agruras de uma homogeneização abjeta e cruel) se não coubermos nos moldes impostos pela tecnocracia?
É sempre surpreendente (porém esclarecedor) perceber quanta dificuldade nós (da área biomé­dica) temos para aceitar o fato de que as expressões da oralidade são manifestações de con­teúdos psicológicos de ordem inconsciente, as quais se enraízam no oceano obscuro das vi­vências sexuais infantis. Ao mesmo tempo em que tentamos tratar o "evento" chupar dedo (ou chupeta), fechamos - freqüentemente - os olhos às questões a serem resolvidas pela pró­pria criança no que diz respeito à satisfação das necessidades fundamentais do seu desenvolvimento. Pior: tentamos estabelecer tratamentos às vezes cruéis (meu tio tinha as unhas pintadas com Buscopan para afastar o dedo na boca) no afã de restituir uma "normali­dade" por nós (tecno-bio-medicina) estabelecida sem levar em conta a subjetividade (das constituições e dos caminhos trilhados).
Na área do nascimento humano o mesmo tratamento des-umano se observa quando forçamos o tempo de nascer dentro de normas rígidas, cegando-nos à evidência avassaladora de que ninguém ama igual, ninguém geme igual e ninguém vai parir da mesma forma. Os tempos são construídos sobre a rocha bruta das emoções vividas, e estas são irreprodutíveis. Somos ca­minhantes das estrelas e temos nosso pegadas na poeira das estrelas, como dizia Max, e isso nos confere uma vivência absolutamente particular do universo à nossa volta. É a "paralaxe" que Zizec nos fala: a capacidade de encarar o mesmo evento (amar, amamentar, chupar o dedo, parir) de ângulos diversos, e com isso observar objetos distintos, em função de subjetivi­dades únicas. Na obstetrícia contemporânea, as curvas de Friedmann, usadas para estabele­cer tempos de trabalho de parto, são usadas como "moldes" nos quais as mulheres precisam forçadamente se adaptar, sob pena de serem vítimas do bisturi fatal a lhes cortar a carne e os sonhos acalentados.
Zeza sempre me dizia que um dia virá em que um funcionário de Motel baterá à porta de um casal que namora acima de tempo normal padronizado, segundo a "curva de Ric"... E dirá: "Vocês não podem mais ficar aí. É perigoso. O tempo médio de utilização libidinosa destas sala já foi ultrapassado. Saiam, ou arrombaremos".
Chupamos dedos, mamamos, amamos e trepamos de acordo com uma história que é única, mas a visão positivista e homogeneizante da sociedade espera que nos adaptemos ao modelo imposto por uma noção tacanha de "normalidade".
Não se iluda: a mesma força que nos obriga a inexorabilidade no tratamento das crianças que chupam dedo também se faz presente na visão diminutiva do sujeito que ama e pari.
Segundo Maximilian é a mais brutalizante das epidemias médicas: a "normose"...
A propósito... Friedmann nunca desejou que suas curvas fossem utilizadas para normatizar o nascimento humano. Da mesma forma que estabelecemos a altura média das pessoas em um determinado local ou país, fizemos com o parto - e o desenvolvimento infantil. Mas ainda não vi ninguém cortando pernas para que alguém se adaptasse ao tamanho médio da popu­lação. Por enquanto, pois o espectro de Procusto paira sobre nossas cabeças.
* O texto redigido circulou na lista virtual Parto Nosso em maio de 2010.
Imagem: The Modern Bed of Procustes - Punch Cartoon.

4 comentários:

  1. Puxa, não sei o q está acontecendo, mas meus posts saem todos em um único parágrafo... mesmo deixando os devidos espaços entre as frases... perdõem!

    ResponderExcluir
  2. Bianca, isso pode estar acontecendo porque você deve estar copiando um texto formatado em outro programa. Se você conseguir, mexa no html do post e verifique o código do espaço e coloque-o onde você quiser.

    A propósito, o texto é interessante, apesar de um tanto "romântico". Às vezes, menos firulas e mais objetividade tornam as palavras mais democráticas, e portanto, fazem do texto uma possibilidade de debate. Um pouco de dialética materialista faz bem... rsrsrs

    Beijos

    ResponderExcluir
  3. oiii adoreiii seu blog... estou te seguindo se for possível me siga tbm...

    b'jinhos!

    ResponderExcluir
  4. "Ninguém ama igual, ninguém geme igual e ninguém vai parir da mesma forma."

    Um dia, eu ainda vejo um parto..... será vontade de ocitocina ou endorfina?


    “... as curvas de Friedmann, usadas para estabelecer tempos de trabalho de parto, são usadas como "moldes" nos quais as mulheres precisam forçadamente se adaptar, sob pena de serem vítimas do bisturi fatal a lhes cortar a carne e os sonhos acalentados.”

    Ai os sonhos! Os sonhos!


    Adorei o texto, viva ric jones!

    ResponderExcluir

LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...