terça-feira, 14 de agosto de 2012

Natureza da Violência

por Kalu Brum

Escolheu fazer medicina porque gostava de ajudar pessoas. Desde de pequenina ela socorria os coleguinhas que se machucavam, os animais enfermos. A medicina era uma vocação para fazer deste lugar um mundo melhor, dizia ela.
Estudou muito: anos de cursinho, abrindo mão das baladas e até mesmo do grande amor que surgiu no caminho. Era preciso estudar, madrugadas a fio, sacrificando qualquer coisa que a desviasse do caminho. Passou em uma das melhores faculdades do país. Orgulho na família, status no cursinho e na escola que frequentava. Foi garota propaganda de ambos e dava palestras motivacionais: como entrar em medicina.
Na faculdade aprendia mais sobre doenças, exames, diagnósticos, cirurgias do que sobre ouvir, acolher, entender os processos que levavam às doenças. Dava-se mais importância para vírus, bactérias do que para o seu hospedeiro: o ser humano.
Congressos patrocinados por laboratórios a mostrarem as grandes novidades das terras da alopatia. Seduzir para ser receitado. Ser receitado para gerar receita.
Ela decidiu pela obstetrícia. Nos hospitais escola, havia uma fila de alunos para fazer exames de toque nas pacientes em trabalho de parto. Um professor falava no corredor: vamos fazer um forceps, no leito 43, para os alunos aprenderem? E lá os alunos esqueciam do ser humano em nome da ciência.
Saiu do interior do país para a capital. Conheceu Wellington, que com seus olhos de jabuticaba, a seduziu naquela noite de forró. Ela esperou por meses a menstruação chegar. Pensava que a fome, excesso de trabalho tivesse resultado em um problema ginecológico. A barriga começou a crescer, mas ela achava que a falta de grana e muito pão que comia, que era o que dava para comprar, que tinha levado aos quilos a mais.
Em uma faxina pesada, desmaiou e foi levada ao SUS. Descobriu ali que estava grávida de mais de seis meses.
Quando as dores do nascimento começaram ela foi para o hospital. Pediu para que sua amiga fosse junto, afinal, ela nunca mais encontrou o rapaz de olhos de Jabuticaba. Ela não pode entrar.
Deixou todos os seus pertences na entrada: brincos, óculos, roupa. Lembrou-se de sua rápida passagem pela polícia.
Entregou seu ralo cartão de pré-natal. A enfermeira nem olhou na sua cara. Colocou um soro e mandou que ela ficasse deitada. Era praticamente impossível diante da dor das contrações.
O professor chamou a residente: vai lá e faça um exame de toque naquela ali. Ela fez o que aprendeu: nem olhou na cara daquela mulher assustada, com dor, que dizia: doutora, me dá sua mão.
A princípio pensou em acolher, mas voltou para o pedestal e distanciamento necessário. Foi introduzindo a mão. Estava com 8 centímetros. Avisou.
Vamos passar um forcéps nessa daí para você ver como funciona. Então será o pacote completo: episiotomia, fórceps e kristeller.
A faxineira gritava de dor. A residente pode ouvir a enfermeira chefe dizer: na hora de fazer você não gritou, né? Então fique quietinha senão vamos deixar você aí. Ela se calou, engoliu a dor.
Em nome da ciência um fórceps, uma episiotomia, um Kristeller. Ela nunca se sentiu tão humilhada com aquele tanto de estudantes em frente a sua vagina aberta. E assim, chegou ao mundo, um menino pequeno, sem pai, filho de uma mãe assustada. Foi levado, aspirado. Ela mal pode vê-lo. Ficou sozinha na sala de espera, sentindo muito frio. Sozinha no quarto, com muitas outras mães. No meio da madrugada veio a saber que ele não havia sobrevivido.
Ela não pode ver o corpo e só o viu no dia do velório. Enterrou seu primeiro filho e decretou: nunca mais quero parir! Sofrer assim ninguém merece. Quando contava sobre a violência que tinha sofrido, todas diziam: é assim mesmo.
A residente virou obstetra. Aprendeu a fazer cesáreas como ninguém e depois daquele campo de concentração que foi sua residência teve a certeza: cesáreas agendadas é o melhor caminho para o médico. Talvez para mãe e bebê, mesmo que a evidência científica provasse o contrário.



A história acima relata uma cena de violência fictícia que acontece diariamente nos hospitais do país. Mulheres são objetos de aprendizado para residentes. E assim, coisificadas, esses profissionais deixam de entender que ali, em trabalho de parto, existe uma mulher no momento mais importante de sua vida.
A violência, tida como tão normal, acontece sem estranhamento. E talvez nasça desta forma de aprendizado.
Precisamos abrir a nossa boca e denunciar a violência obstétrica. A Lígia Moreira Senna, do Blog Cientista que Virou Mãe, com apoio do Mamíferas e Parto no Brasil fez um teste revelando as facetas da violência obstétrica. Ela também tem 400 mulheres inscritas para realizar uma pesquisa sobre o tema.
Mais uma vez o  Mamíferas, Cientista que virou Mãe e Parto no Brasil se unem para lançar uma blogagem coletiva em vídeo. A idéia é que possamos fazer um vídeo com depoimentos de mulheres do Brasil sobre a violência que sofreram durante o parto.
Envie um vídeo de até 2 minutos relatando a violência que sofreu  para naoaviolencianoparto@gmail.com Nas próximas semanas vamos reunir os depoimentos e fazer um vídeo coletivo para mostrarmos a violência que acontece nas instituições durante o momento do parto.
Junto com o vídeo, envie seu nome completo, estado, nome da instituição onde a violência aconteceu e data do parto.
Sair do silêncio pode evitar que outras mulheres sofram novas formas de violência de gênero. Você pode também escrever seu depoimento no site http://violencianoparto.wordpress.com/depoimentos. Participe.

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