É com grande satisfação que publicamos um relato consciente, crítico, e atual sobre o que nós mulheres passamos ao nos depararmos com uma gravidez não planejada, frente a falta de apoio que nossa sociedade reflete em nossa maternagem, incentivando um parto sem acompanhante, um não aleitamento materno exclusivo, e por seis meses, a tercerização de nossos filh@s e todas as outras ambiguidades culturais.
Quem vem para a prosa é Carolina Pombo, que está em solos franceses, em seu doutorado, com cria e companheiro a tira colo, como um dia sonhou - antes de ser mãe!
A
maternidade chegou na minha vida de forma inesperada. Eu não tinha o
sonho de engravidar, eu não era casada nem tinha uma relação
amorosa estável, eu estava no meio do mestrado acadêmico e acabara
de voltar a namorar com meu companheiro, meu atual marido. Eu sonhava
em fazer o doutorado no exterior e ter dias mais livres, com o pé na
estrada.
Quando
soubemos da gravidez, foi um choque. A resposta positiva foi lida na
companhia do meu namorado, duas amigas e minha irmã mais nova.
Comemorações e lamentos ao mesmo tempo rodearam a minha cabeça,
que girava em direções completamente opostas. Eu não queria mudar
totalmente o curso da minha vida. Eu não queria parar de trabalhar,
abandonar o sonho do doutorado no exterior, e nem queria casar, mesmo
amando muito o pai da minha filha. Eu não queria ser outra pessoa –
e a maternidade, diziam, faz com que o mundo a enxergue
prioritariamente como “mãe”. Eu não queria ser limitada a essa
identidade.
A primeira
questão que eu encarei quando me vi grávida foi, então, a do
aborto. Faria um aborto e continuaria meu percurso profissional e
pessoal sem grandes mudanças?
A
conversa com meu companheiro, na ocasião, foi fundamental para que
eu tomasse uma decisão. Para ele, a gravidez não me impediria de
fazer nada do que eu vinha sonhando, apenas retardaria um pouco meus
planos. Ele me apoiaria em qualquer decisão, mas deixou claro que
não via a maternidade como uma redução ou uma transformação
completa da minha identidade. Eu poderia ser mãe, profissional,
amante, doutoranda no exterior, com o mochilão nas costas e família
ao lado...
Eu
topei o desafio, e fui, gradualmente, retomando minha autonomia,
fazendo da maternidade uma escolha e não um destino. Eu não tinha
planejado o tempo em que Laura viria, mas eu poderia responder à
essa novidade com o meu protagonismo. Foi com essa decisão que me
preparei para um parto natural e enfrentei os constrangimentos do
sistema obstétrico brasileiro. Abandonei a primeira obstetra que
certamente me induziria a uma cesária desnecessária, depois tive
que desistir de parir em casa porque o novo médico não me apoiava a
esse ponto, e me indispus com ele por causa de uma atitude anti-ética
em relação ao preço de sua assistência. Pari muito bem numa
maternidade privada, tendo consciência, porém, de que eu
representava os 10% de uma classe econômica privilegiada que
sustenta a enorme desigualdade social entre as mães no meu país.
Esse foi um dos primeiros processos que me levou a entender a
contradição dessa identidade materna compulsória: se, depois da
concepção, passam a nos olhar prioritariamente como “mãe” é
geralmente para nos tornar em receptáculos dos conselhos (e
cobranças) alheias e não para nos apoiar em nossas escolhas.
O
fato é que, mesmo com todo o apoio do meu companheiro, tive que
lidar com os enormes desafios da maternidade compulsória – essa
que querem nos fazer vestir a todo custo emocional, econômico, e
conjugal possível. Ela é composta das pressões para que, enquanto
mães, adotemos certas práticas de maternagem que deixam muito pouca
margem de autonomia. São práticas tidas como “naturais” (ou
seja, normais), quando na verdade são moldadas por padrões de
consumo que invadem os corpos e o tempo das mulheres, que impõem
sobre elas a responsabilidade quase integral do bem estar das
crianças, oferecendo pouco ou nenhum suporte para tal. São padrões
que oferecem soluções “privatistas” para os cuidados com os
bebês: que defendem hipocritamente a amamentação materna enquanto
nos seduzem com bicos de plásticos em cada esquina; que nos “educam”
para ter empatia pelas necessidades dos bebês, mas que não enxergam
as nossas necessidades como indivíduos e cidadãs; que nos empurram
a “terceirizar” a maternagem e depois nos culpam por fazê-lo.
Percebi que, para exercer de fato uma maternidade “natural” –
ou seja, espontânea e autêntica – eu precisava lutar contra o
aliciamento de discursos contraditórios que sempre, invariavelmente,
apontavam para a “culpa materna” e não problematizavam a “culpa
da sociedade”.
Enquanto
me debatia com os constrangimentos diários dessa maternidade, passei
a debater com o meu companheiro: vamos fazer diferente?
Apesar
do mercado de trabalho exigir que os homens estejam muito mais tempo
fora do ambiente doméstico e das mulheres que se dividam entre
trabalho do cuidado e trabalho (menos)
remunerado, eu e ele passamos a negociar uma maternidade diferente.
Ele passou a se integrar mais, cada vez mais, nos cuidados com a
Laura (a começar pela participação no parto e na amamentação). E
eu continuei buscando alternativas coletivas, que me proporcionassem
o protagonismo materno e ao mesmo tempo a manutenção dos meus
sonhos pessoais e profissionais. Esbarrei na falta de instituições
de qualidade, para as crianças e os pais, na falta de espaços
públicos de lazer, na falta de receptividade às crianças em
ambientes diversos, nas poucas (ou nenhuma) ofertas de trabalho
remunerado que me permitissem conviver de verdade com minha filha.
Enfim, comecei a lutar com uma sociedade despreparada para a
cidadania das crianças e de suas mães. Enquanto essa sociedade
esperava que eu assumisse o cuidado integral da minha filha e
abandonasse uma carreira profissional, ou que explorasse o trabalho
de outra mulher e me ausentasse demais de casa, eu tentava esboçar
soluções alternativas, negociando sempre com o marido. Não foi
simples, não foi fácil. Discutimos muitas vezes, peitamos os
patrões, os parentes, os especialistas, e as expectativas alheias –
e seguimos na tentativa de conciliar nossos sonhos com o bem estar
de nossa filha.
Hoje,
falamos de maternidade transitória porque entendemos que “ser mãe”
é algo diverso, que muda ao longo da História e das culturas das
sociedades. Porque a forma como as mulheres são afetadas por essa
função não é universal, mas é mutável, é transitória, varia
de acordo com as expectativas e os recursos coletivos que elas vêem.
E por isso, nem ele nem eu podemos impor sobre a “mãe da Laura”
as expectativas de uma maternagem padronizada. Por isso, ele se
integra muito mais do que o “esperado” nas práticas de
maternagem que estabelecemos. A maternidade transita entre nós, e
hoje, é compartilhada com as estruturas coletivas que são amigáveis
e receptivas às famílias com filhos, no país que escolhemos passar
os próximos três anos. Estamos na França, onde faço meu doutorado
e ele aprende o francês e se dedica bastante à filha de quatro
anos; onde eu acabo de escrever meu primeiro livro sobre o assunto e
ele se prepara para renovar sua vida profissional. (Tudo com muito
menos dinheiro do que tínhamos no Brasil, mas também com muito mais
tempo para usufruir da companhia uns dos outros).
No
livro A Mãe e o tempo: ensaio da maternidade transitória (que será
publicado no final de outubro pela editora Memória Visual, no Rio de
Janeiro), narro as dificuldades que vivi no primeiro ano de minha
filha, e ensaio explicações sociológicas para elas, identificando
contradições em discursos feministas e maternistas que, muitas
vezes, nos fazem parar na cadeira de terapeutas e analistas, ou nos
levam a tocar um ativismo apaixonado – sem que nos demos conta da
reprodução de desigualdades sociais tão arraigadas. Eu busco, com
esse livro, entender meu próprio percurso e incentivar a outras
mulheres e famílias que busquem seus caminhos de forma autêntica,
contribuindo para que Estado, empresas e demais organizações se
responsabilizem também por nossos pequenos cidadãos.
O
blog Parto no Brasil é um dos exemplos de ativismo materno que não
se ilude com soluções privatistas, mas que nos leva a pensar na
complexidade do sistema obstétrico brasileiro, que nos leva a
reconhecer realidades e maternidades tão diferentes das nossas, a
aprender com elas e a olhar de forma mais crítica para nossos
padrões de maternagem. Agradeço demais a Bianca e a Ana Carolina
que tem dialogado comigo nesses anos de blogosfera (a Bianca até
publicou seu relato de parto no meu antigo blog, o What Mommy Needs)!
Espero voltar aqui mais pra frente, para contar do desenrolar de
minha pesquisa que é basicamente sobre o primeiro ano de transição
da maternidade de mães brasileiras que vivem no Brasil, em Portugal,
na França e na Suécia. Até breve!
*
Carolina Pombo é escritora, pesquisadora e
psicóloga social, e escreve seus diários de trabalho, viagens e
escrita nos blogs Kaléidoscope e Com a cabeça fora d´`agua, além de participar do coletivo feminista FemMaterna. Neste mês publica seu primeiro livro!
E, já que o tema é maternidade versus carreira fica o convite para a Blogagem Coletiva que o FemMaterna está organizando, abaixo:
E, já que o tema é maternidade versus carreira fica o convite para a Blogagem Coletiva que o FemMaterna está organizando, abaixo:
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