quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Maternidade, feminismo e estudos além mar, com Carol Pombo

É com grande satisfação que publicamos um relato consciente, crítico, e atual sobre o que nós mulheres passamos ao nos depararmos com uma gravidez não planejada, frente a falta de apoio que nossa sociedade reflete em nossa maternagem, incentivando um parto sem acompanhante, um não aleitamento materno exclusivo, e por seis meses, a tercerização de nossos filh@s e todas as outras ambiguidades culturais. 

Quem vem para a prosa é Carolina Pombo, que está em solos franceses, em seu doutorado, com cria e companheiro a tira colo, como um dia sonhou - antes de ser mãe!

Minha maternidade transitória

A maternidade chegou na minha vida de forma inesperada. Eu não tinha o sonho de engravidar, eu não era casada nem tinha uma relação amorosa estável, eu estava no meio do mestrado acadêmico e acabara de voltar a namorar com meu companheiro, meu atual marido. Eu sonhava em fazer o doutorado no exterior e ter dias mais livres, com o pé na estrada.

Quando soubemos da gravidez, foi um choque. A resposta positiva foi lida na companhia do meu namorado, duas amigas e minha irmã mais nova. Comemorações e lamentos ao mesmo tempo rodearam a minha cabeça, que girava em direções completamente opostas. Eu não queria mudar totalmente o curso da minha vida. Eu não queria parar de trabalhar, abandonar o sonho do doutorado no exterior, e nem queria casar, mesmo amando muito o pai da minha filha. Eu não queria ser outra pessoa – e a maternidade, diziam, faz com que o mundo a enxergue prioritariamente como “mãe”. Eu não queria ser limitada a essa identidade.

A primeira questão que eu encarei quando me vi grávida foi, então, a do aborto. Faria um aborto e continuaria meu percurso profissional e pessoal sem grandes mudanças?

A conversa com meu companheiro, na ocasião, foi fundamental para que eu tomasse uma decisão. Para ele, a gravidez não me impediria de fazer nada do que eu vinha sonhando, apenas retardaria um pouco meus planos. Ele me apoiaria em qualquer decisão, mas deixou claro que não via a maternidade como uma redução ou uma transformação completa da minha identidade. Eu poderia ser mãe, profissional, amante, doutoranda no exterior, com o mochilão nas costas e família ao lado...

Eu topei o desafio, e fui, gradualmente, retomando minha autonomia, fazendo da maternidade uma escolha e não um destino. Eu não tinha planejado o tempo em que Laura viria, mas eu poderia responder à essa novidade com o meu protagonismo. Foi com essa decisão que me preparei para um parto natural e enfrentei os constrangimentos do sistema obstétrico brasileiro. Abandonei a primeira obstetra que certamente me induziria a uma cesária desnecessária, depois tive que desistir de parir em casa porque o novo médico não me apoiava a esse ponto, e me indispus com ele por causa de uma atitude anti-ética em relação ao preço de sua assistência. Pari muito bem numa maternidade privada, tendo consciência, porém, de que eu representava os 10% de uma classe econômica privilegiada que sustenta a enorme desigualdade social entre as mães no meu país. Esse foi um dos primeiros processos que me levou a entender a contradição dessa identidade materna compulsória: se, depois da concepção, passam a nos olhar prioritariamente como “mãe” é geralmente para nos tornar em receptáculos dos conselhos (e cobranças) alheias e não para nos apoiar em nossas escolhas.

O fato é que, mesmo com todo o apoio do meu companheiro, tive que lidar com os enormes desafios da maternidade compulsória – essa que querem nos fazer vestir a todo custo emocional, econômico, e conjugal possível. Ela é composta das pressões para que, enquanto mães, adotemos certas práticas de maternagem que deixam muito pouca margem de autonomia. São práticas tidas como “naturais” (ou seja, normais), quando na verdade são moldadas por padrões de consumo que invadem os corpos e o tempo das mulheres, que impõem sobre elas a responsabilidade quase integral do bem estar das crianças, oferecendo pouco ou nenhum suporte para tal. São padrões que oferecem soluções “privatistas” para os cuidados com os bebês: que defendem hipocritamente a amamentação materna enquanto nos seduzem com bicos de plásticos em cada esquina; que nos “educam” para ter empatia pelas necessidades dos bebês, mas que não enxergam as nossas necessidades como indivíduos e cidadãs; que nos empurram a “terceirizar” a maternagem e depois nos culpam por fazê-lo. Percebi que, para exercer de fato uma maternidade “natural” – ou seja, espontânea e autêntica – eu precisava lutar contra o aliciamento de discursos contraditórios que sempre, invariavelmente, apontavam para a “culpa materna” e não problematizavam a “culpa da sociedade”.

Enquanto me debatia com os constrangimentos diários dessa maternidade, passei a debater com o meu companheiro: vamos fazer diferente?

Apesar do mercado de trabalho exigir que os homens estejam muito mais tempo fora do ambiente doméstico e das mulheres que se dividam entre trabalho do cuidado e trabalho (menos) remunerado, eu e ele passamos a negociar uma maternidade diferente. Ele passou a se integrar mais, cada vez mais, nos cuidados com a Laura (a começar pela participação no parto e na amamentação). E eu continuei buscando alternativas coletivas, que me proporcionassem o protagonismo materno e ao mesmo tempo a manutenção dos meus sonhos pessoais e profissionais. Esbarrei na falta de instituições de qualidade, para as crianças e os pais, na falta de espaços públicos de lazer, na falta de receptividade às crianças em ambientes diversos, nas poucas (ou nenhuma) ofertas de trabalho remunerado que me permitissem conviver de verdade com minha filha. Enfim, comecei a lutar com uma sociedade despreparada para a cidadania das crianças e de suas mães. Enquanto essa sociedade esperava que eu assumisse o cuidado integral da minha filha e abandonasse uma carreira profissional, ou que explorasse o trabalho de outra mulher e me ausentasse demais de casa, eu tentava esboçar soluções alternativas, negociando sempre com o marido. Não foi simples, não foi fácil. Discutimos muitas vezes, peitamos os patrões, os parentes, os especialistas, e as expectativas alheias – e seguimos na tentativa de conciliar nossos sonhos com o bem estar de nossa filha.

Hoje, falamos de maternidade transitória porque entendemos que “ser mãe” é algo diverso, que muda ao longo da História e das culturas das sociedades. Porque a forma como as mulheres são afetadas por essa função não é universal, mas é mutável, é transitória, varia de acordo com as expectativas e os recursos coletivos que elas vêem. E por isso, nem ele nem eu podemos impor sobre a “mãe da Laura” as expectativas de uma maternagem padronizada. Por isso, ele se integra muito mais do que o “esperado” nas práticas de maternagem que estabelecemos. A maternidade transita entre nós, e hoje, é compartilhada com as estruturas coletivas que são amigáveis e receptivas às famílias com filhos, no país que escolhemos passar os próximos três anos. Estamos na França, onde faço meu doutorado e ele aprende o francês e se dedica bastante à filha de quatro anos; onde eu acabo de escrever meu primeiro livro sobre o assunto e ele se prepara para renovar sua vida profissional. (Tudo com muito menos dinheiro do que tínhamos no Brasil, mas também com muito mais tempo para usufruir da companhia uns dos outros).

No livro A Mãe e o tempo: ensaio da maternidade transitória (que será publicado no final de outubro pela editora Memória Visual, no Rio de Janeiro), narro as dificuldades que vivi no primeiro ano de minha filha, e ensaio explicações sociológicas para elas, identificando contradições em discursos feministas e maternistas que, muitas vezes, nos fazem parar na cadeira de terapeutas e analistas, ou nos levam a tocar um ativismo apaixonado – sem que nos demos conta da reprodução de desigualdades sociais tão arraigadas. Eu busco, com esse livro, entender meu próprio percurso e incentivar a outras mulheres e famílias que busquem seus caminhos de forma autêntica, contribuindo para que Estado, empresas e demais organizações se responsabilizem também por nossos pequenos cidadãos.

O blog Parto no Brasil é um dos exemplos de ativismo materno que não se ilude com soluções privatistas, mas que nos leva a pensar na complexidade do sistema obstétrico brasileiro, que nos leva a reconhecer realidades e maternidades tão diferentes das nossas, a aprender com elas e a olhar de forma mais crítica para nossos padrões de maternagem. Agradeço demais a Bianca e a Ana Carolina que tem dialogado comigo nesses anos de blogosfera (a Bianca até publicou seu relato de parto no meu antigo blog, o What Mommy Needs)! Espero voltar aqui mais pra frente, para contar do desenrolar de minha pesquisa que é basicamente sobre o primeiro ano de transição da maternidade de mães brasileiras que vivem no Brasil, em Portugal, na França e na Suécia. Até breve!


* Carolina Pombo é escritora, pesquisadora e psicóloga social, e escreve seus diários de trabalho, viagens e escrita nos blogs Kaléidoscope e Com a cabeça fora d´`aguaalém de participar do coletivo feminista FemMaterna. Neste mês publica seu primeiro livro!




E, já que o tema é maternidade versus carreira fica o convite para a Blogagem Coletiva que o FemMaterna está organizando, abaixo:



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